Finanças comportamentais: #7 – Efeito dotação e o valor das coisas

Foto via Mercado e Consumo.

Imagine que você tenha um carro usado para vender. É provável que o preço que você peça por ele seja maior do que o que você pagaria por um carro semelhante em mercado. Concorda com isso? Enquanto você reflete a respeito, saiba que você não está sozinho se responder um honesto “sim”. Evidências científicas, como os estudos seminais de Knetsch e Sinden (1984) e Kahneman, Knetsch e Thaler (1991), mostram que temos uma tendência a supervalorizar aquilo que é nosso em comparação ao que está em posse de outrem. A esse viés cognitivo os pesquisadores atribuíram o nome de efeito dotação (endowment effect) ou efeito posse.

No estudo original de Knetsch e Sinden (1984), participantes de um experimento receberam um bilhete de loteria ou seu valor equivalente em dinheiro (algo como 2 dólares). Algum tempo depois, eles tiveram a oportunidade de negociar, trocando os bilhetes por dinheiro ou vice-versa. Poucos participantes se dispuseram a fazer negócios. Ou seja, preferiram ficar com sua escolha inicial. É como se eles tivessem gerado um “apego” por aquilo que receberam originalmente.

Segundo Ariely (2008), as pessoas tendem a se apaixonar por aquilo que já têm, como quando temos um carro velho do qual temos dificuldade de nos desfazer, mesmo que ele fique quase que o tempo todo parado em uma garagem. Outro aspecto destacado por Ariely (2008) é que as pessoas tendem a valorar mais o que perderão do que o podem ganhar ao deixarem de ter a posse de algo. No caso do carro velho, deixar de vê-lo todos os dias e lembrar das eventuais incríveis viagens que fizeram juntos pode parecer ter mais valor do que o ganho em dinheiro pela sua venda.

Essa questão pode levar ao entendimento do porquê muitas pessoas passam a reconhecer o valor de algo apenas quando o perde. É comum as pessoas sentirem a falta de um ente querido, com quem quase nunca mantinham contato, quando esse parente morre e elas percebem que nunca mais poderão falar com ele. Alguém pode questionar o porquê, então, não faziam contato com ele enquanto estava vivo. Porque elas poderiam fazer isso a qualquer momento! Havia a posse do direito de fazer contato a qualquer momento, que foi retirado quando essa pessoa morreu.

Nem sempre o efeito dotação leva as pessoas, na prática, a manifestar um comportamento cuidadoso com aquilo que têm, mas sim de exigir muito para renunciá-lo. Um livro que está em sua estante e que nunca foi lido por você poderá ter um pedido de preço de venda superior ao que você estaria disposto a pagar pelo mesmo livro hoje. Pode ser que esse livro carregue consigo uma lembrança afetiva, faça lembrar a pessoa que o presenteou ou simplesmente seja um livro que “é seu!”. Seja como for, há uma tendência a tentar colocar no preço esses aspectos subjetivos, que podem não fazer o menor sentido para um comprador em potencial.

No mundo dos negócios, quando o efeito dotação se manifesta, alguns bons negócios podem deixar de ser feitos, especialmente pelo fato de os vendedores perderem as referências dos preços de mercado e construírem preços baseados no efeito posse. Observe o mercado imobiliário de sua cidade. Provavelmente, você identificará terrenos que estão postos a venda por um preço “fora da realidade”. Existem casos de pessoas que pagaram por um imóvel um valor infinitamente menor do que agora estão pedindo para se desfazerem dele. Até aí, pode-se considerar que isso faz parte do mercado. Em tese, sim. Mas quando esses valores fogem totalmente a uma mediana de mercado, e deseja-se cobrar as emoções que estão por trás do processo original que levou à escolha e aquisição do imóvel, pode-se perder de fazer negócios dentro do campo racional.

O comprador não tem a mesma perspectiva que o vendedor quanto ao histórico do item em negociação. A percepção de valor do comprador passa por outros elementos, talvez até emocionais também (como no caso de artigos de colecionador, cuja formação de preços se dá por vias totalmente subjetivas), mas não dá para exigir que ele reconheça que os pais do comprador doaram para ele uma casa que foi construída pelo seu avô. Um quadro formado por milhares de peças de quebra-cabeças pode ter dado ao vendedor um dos mais árduos trabalhos de sua vida, enquanto do ponto de vista do comprador trata-se de uma mera decoração para a sala de estar. São perspectivas diferentes que podem afetar a percepção de preço e valor.

No mercado financeiro, o efeito dotação faz com que detentores de ações de empresas que estejam perdendo valor sigam com elas em carteira porque simplesmente não admitem vender os papéis com perda e por acreditar que só devem vendê-los por um preço “x”, muitas vezes inatingível, supervalorizando-os. Acredite, conforme os destaques das peculiaridades do efeito posse apresentados por Ariely (2008), existem pessoas que se “apaixonam” pelas ações das empresas que compraram, especialmente se o processo de compra se deu com uma reserva financeira acumulada com muito esforço.

No mundo dos negócios físicos, muitos empresários perdem a chance de vender suas empresas, as quais não conseguem mais tocar, porque esperam recuperar com a venda o valor emocional envolvendo as histórias vividas ao longo do tempo. Por medo de perder essas lembranças quando da venda, acabam perdendo a chance de recuperarem parte do que foi investido, muitas vezes até o total com ganhos inclusive, e levam a empresa simplesmente a fechar as portas, falida.

Por fim, o efeito posse pode até fazer você realizar excelentes negócios, cobrando preços acima do que o mercado, a princípio, estaria disposto a pagar, mas isso tende a ser a exceção. Em geral, quem permite que o efeito posse contamine suas negociações costumam perder a chance de realizar negócios que poderiam ser considerados bons, enquanto esperam que alguém aceite sua oferta incoerente. Se você tem dúvidas, basta procurar em sua cidade os terrenos e construções à venda por preços acima da faixa razoável. Provavelmente, verá as placas de venda, já desbotadas, ainda a marcá-los. E você, sofre com o efeito dotação? Enquanto pensa, aproveite para ligar para aquele ente querido que tanto ama e com quem não fala há algum tempo. Até o próximo artigo!

 

Robson Braga
Sócio-fundador da BR2 Consultoria Empresarial
Professor de Finanças da Universidade do Estado da Bahia

 

  • Ariely, D. (2008). Previsivelmente irracional. Elsevier Brasil.
  • Kahneman, D., Knetsch, J. L., & Thaler, R. H. (1991). Anomalies: The endowment effect, loss aversion, and status quo bias. Journal of Economic perspectives5(1), 193-206.
  • Knetsch, J. L., & Sinden, J. A. (1984). Willingness to pay and compensation demanded: Experimental evidence of an unexpected disparity in measures of value. The Quarterly Journal of Economics99(3), 507-521.

Redação BR2

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